Dercy Gonçalves viveu mais de 100 anos. Ela é de um tempo em que diversão para as massas estava começando a existir. Viu e viveu todo advento da tecnologia e foi capaz, ainda lúcida, de participar da primeira transmissão em HD do SBT (emissora com quem tinha contrato vitalício) num dos quadros do programa Sílvio Santos que, diga-se de passagem, a adorava. Viu e viveu toda a política brasileira que se alternou entre democracias e ditaduras. Aliás, quando nasceu, nem as mulheres podiam votar e as atrizes eram consideradas prostitutas.
Com mais de 90 anos, Dercy colocou os seios pra fora e desfilou por toda a Marquês de Sapucaí. Encarei aquele gesto acidental (pois a culpa foi do vestido que conforme ela levantava os braços, os seios tentavam escapar) como uma feroz crítica: por um lado, àquelas meninas com o corpo escultural que dançavam nuas; por outro, que “esse negócio de idade não existe”, como tantas vezes a própria Dercy falou.
Tivesse ela nascido nos Estados Unidos, colocaria Madonna no chinelo e seria assunto para as mais desenfreadas feministas. Tivesse ela nascido lá, não teria sido Dercy Gonçalves. Dercy era o retrato fiel do povo brasileiro: contraditório e coerente, lúcido e alienado, desbocado e recatado, religioso e ateu, popular e elitizado, colonizador e colonizado, alegre e melancólico.
Esta senhora foi um daqueles ícones que conheci criança e parecia que jamais iria morrer. Na tarde deste dia 19 de junho ela se foi. Quando contei pra minha mãe por telefone, ela fez uma pequena pausa e disse logo em seguida: “nossa, ela morreu!”. Espanto e compaixão eram percebidos na sua voz. Foi a mesma reação que eu vi com todos quando ficaram sabendo. Dercy sempre foi adorada!
Dercy não acreditava em Deus. Ou melhor, quando dizia Deus, se referia à Natureza. Não acreditava em vida após à morte, tinha a certeza de que sua energia apenas voltaria à natureza. Quando indagada se teria medo da morte, ela dizia: “Não tenho medo de morrer! Não tenho medo de viver!”. E Dercy Gonçalves viveu intensamente cada minuto de sua vida e escreveu seu nome na história da arte no Brasil.
Dercy não morreu, viverá pra sempre por aí. Pooorraaaa!!!!
Nilton Serra